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Zona de crença

Alguns termos ganham fama porque são, ao mesmo tempo, alívio cômico e existencial. “Crenças limitantes”, por exemplo. O conceito pode ser aplicado para qualquer tipo de insucesso, falha, escorregão ou quedas humilhantes em dias de chuva. Não foi selecionado pra Nasa? Crença limitante. Não sabe usar o Excel? (meu caso). Crença limitante. Fiquei pensando nisso porque sonhei um sonho recorrente. Está nevando, o que faz todo o sentido. Estou descalço e falo em inglês com as pessoas, o que não tem qualquer apoio na realidade. Meu inglês é como título do Inter de 2006 pra cá: não existe. Então acho uma casa, depois de horas e horas de voo. Eu pilotava, ora vejam. Chego na casa, olho pela janela e vejo pessoas. São todas iguais, uma porção pessoas gêmeas. Sapos coacham cherie, cherie, cherie. Pego o avisão (hora vejam de novo) que estava estacionado no pátio (o aluguel de um hangar está um absurdo) e me vou. Uma sapa vem junto. Eu a beijo e ela vira um sapo. Então chego na Noruega, que nem sei onde fica e não saber onde estão as coisas pode não ser a melhor ideia se você é o comandante. Mas chego. Há um cartaz em neon, segurado pela mesma pessoa do sonho. Neon porque na Noruega os receptivos de passageiros é outro nível. Na placa está escrito meu nome e a frase “bem-vindo à crenças limitantes”, o que é um péssimo nome para qualquer coisa, muito mais para uma cidade na Noruega.

Outra coisa é esse desprezo pelo meu esforço. Foram anos de esforço, tenho as marcas, das horas e horas fazendo campanhas, escrevendo e escrevendo e escrevendo textos. Cursos, fiz. Tarólogos, consultei. Mudei, casei, descasei, eis-me aqui, senhor. Treinei com afinco, perdi tempo, ganhei experiência, joguei conhecimento pra dentro e dinheiro fora, conheci pessoas, liderei, fui mandado embora, fui contratado, errei dramaticamente e não paguei meus pecados. Rezei pra Deus e ri com o diabo, me prenderam, me perderam, me traí, fiz, desfiz e de muitos jeitos, morri. Tudo isso criou uma zona em mim, que chamam de conforto. Acontece que zonas são avisos de territórios, normalmente de humor de baixa categoria. Zona de guerra. Zona (todo mundo sabe o que é). Zona de refugiados, assim vai. Quando chega a zona de conforto o que me pedem? que eu saia delas. Só pode ser ideia de um gremista.

Escrever não é um testemunho, nem se prestam a ser confissões. Não justifica, não explica, não pede perdão porque nada disso se reivindica. Janelas fechadas continuarão assim porque há motivos, talvez muito mais profundos do que se possa ver. Ainda assim, escrevo. E sonho. E tento ficar à postos, resistente à dor e às descrenças. Não que faça parte dos 20% felizes. O que faço é escrever como quem se lança uma boia. Quem sabe esse tempo seja só um eco da crença limitante, que se transformará em falas ilimitadas entre nós, entre os que se amam e se querem bem. Quem sabe ressurja em outro ciclo como uma ampliação infinita da uma zona de aconchego, onde se possa dormir em paz. É o que desejo, mesmo aos gremistas.