Remarcom

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Quase

– Sua vaca, você não me viu?!

Foi assim que conheci a Solange, chamando a pessoa de vaca. Porque será que gritar que alguém é uma vaca tem esse poder de xingamento? É uma vaca, um bichinho bom. A reação se baseava em um acidente evitado por mim e que seria causado por ela. A proporção do medo não é de se desprezar: uma bicicleta contra uma land rover. Eu era a parte da bicicleta. Passado o momento do choque evitado, cada um para o seu lado, coisas assim acontecem, certo? Errado. Era uma sexta, avenida Água Verde apinhada de carros, nada andava. Nada a não ser eu, de bicicleta. Cheguei no carro e falei o que falei, já confessado ali em cima. Solange baixou o vidro, me sorriu e disse que não havia mesmo me visto, que me pedia desculpas pelo quase atropelamento, que sentia muito. Ainda me perguntou, a vaca, se poderia fazer algo por mim. Ficou esperando a resposta que não vinha porque Solange não fazia sua parte na cena. Não respondeu, não ignorou, não perguntou se eu sabia com quem estava falando, não disse que eu tinha cara de comunista. Aquilo não estava no roteiro daquela discussão. Fiquei num impasse cívico. Depois da reação dela, ainda caberia um “sua bolsonarista”? Isso é pior do que vaca, mas a discussão não escalou. Pedi desculpas pela equiparação ruminante que havia feito. Pedi que prestasse atenção e considerasse as bikes como elementos do trânsito, era o que ela poderia fazer por mim. A danada respondeu que agiria assim, claro. Elogiou a bike e fomos para as nossas vidas. Fiquei pensando que é difícil não me ver: luzes intermitentes, capacete que parece que uma tartaruga está de carona na minha cabeça, sou uma figura estranha. Mas cabia o vaca? E me perguntei outra coisa, essa sim mais grave e que fere os meus marcos civilizatórios. Divido aqui minha dúvida a meu respeito. Se fosse um homem, eu teria tido aquela reação? O chamaria de vaca (que tem outra representação quando dito a alguém do sexo masculino)? Não sei, às vezes somos sequestrados pelas emoções, pelo que achamos que é, reagimos não por aquilo, mas por aquilo que achamos que estamos vendo, pelo que que consideramos justo ou injusto, mas que que ocorreu em 1974, por algo que não está ali, que nem existe, que o acaso trouxe e que se transformou (quem sabe) em distração para a Solange e raiva em mim. Essa bronca de séculos e séculos que temos (nós, os homens principalmente) com as mulheres não fez um mundo melhor. Nós as diminuímos, menosprezamos, enfraquecemos. Tudo para mandar, ganhar melhor ou gritar com elas no trânsito ou fora dele. Não pude me desculpar adequadamente com ela, mas faço isso simbolicamente. De fato eu evitei um acidente do qual poderia sair vegetalizado. Mas vaca? Porque isso amenizou minha raiva? Qual parte minha tem costeletas, usa dente de ouro e acredita nos legendários? Não sei, mas espero que esse aspecto tenha morrido no acidente evitado. A outra coisa que pensei foi sobre a alternativa. E se eu tivesse ficado ali, sendo aquele o meu último ato e tal. Quando toda a minha vida passasse diante de mim, seria um filme bom? Não sei, mas a parte de estar com você, sim.