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Soudade

Não sei se a saudade, como diz o Chico, é um barco que (aos poucos) descreve um arco e evita atracar no cais. Esse é uma saudade de quadro, para ser vista em uma moldura com paspatur. Ela não está no barco, na imagem, lá longe, descrevendo um arco e deixando o porto, parecendo que se vai e a saudade não sei vai, ela te extrai o sumo da presença. Saudade é o inapelável da ausência, a aspereza daquela falta. Ela não se acalma ou extingue nem quando o objeto que da causa a sua existência está diante da gente. É quando dizemos coisas como “há quanto tempo não te vejo” ou “que saudade de você!”. É como se a presença confirmasse, na afirmação, a falta do outro, a falta de nós mesmos com o outro, a falta do outro em nós. A falta não é a saudade, nem sossega a boca seca, o olho inchado, o andar pesado, a perda. Saudade é o buraco que causa, estrago que custa, o espanto que derruba. A saudade não está nem aí, confirma a presença de si e tua ausência em todo o que me cerca e, ao mesmo tempo, não tem cerca, faz fronteira com o pior do eterno. Ela está agora mesmo, ou antes ou depois, gritando de boca fechada, esguichando sonhos de janela azul e muro branco. Saudade mora em um casa procurada em noites de neve e pés descalços. Saudade é uma correntinha , uma aliança, uma caixa de música, mãos dançarinas. Minha mãe se foi de saudades do pai, é o que acho. Porque saudade é um pouco a morte da esperança de se ver o que se quer nas frestas invisíveis das células, das janelas, dos risos, dos riscos, dos ditos, dos olhares, dos jantares (mesmo os não havidos), do que não houve, do que se ouve, dos por tudo e dos portantos. A saudade que sinto não nos pega indo ou vindo, ela mais nega movimentos, mais arde do que bate, mais enfia a chave de fenda na mão do que expõe a cicatriz que a denuncia. Se você está com saudade do que há de verdadeiro na vida, não importa onde você se veja: você está cercado, perdido no mato, deitado na lage, sem coragem ou vontade de tê-la, sem dialetos, linguagens, afetos, aragens, ventos, tons, lembranças, canções, diagramas, mapas, sem as senhas, sem oasis, sem cavalo, sem intervalos, sem descanso, sem você. Saudade é perder todos os dias nas horas todas, nos momentos totais, na respiração suspensa, no corpo cansado, na vista cansada, na mão cansada, na rotina cansada, na saudade descansada para mais um dia de saudade.