
Aprendi a tocar violão há muitos anos. Minha família é muito musical, teatral, artística. Foi meio na marra e outro tanto aconteceu de um jeito natural. Me tornei profissional, mas era reconhecido mesmo como letrista e, vai, cantava bem. Não vou falar da espetacular presença de palco porque já me exibi o suficiente. Eu compunha as coisas e bons amigos pariam de mim o que as limitações no talento me impediam de alcançar em músicas autorais. Por algum tempo, convivi com gente realmente diferenciada do universo musical. Mas foi por sorte, confesso. Sou um sortudo. Conheci você, por exemplo.
Depois aquilo passou, escrever se impôs. Hoje, muito raramente me aproximo do violão e compor não me dá o prazer necessário para ser praticado continuamente. Mas adoro música, você sabe. As escuto, tento entender o significado, letras são importantes. Algumas canções são um chute no estômago de tão resistentes, musculosas e cheias de coragem.
É o caso de Viola Enluarada, escrita em 1968, enquanto a pancada começava a fazer hematomas na história do Brasil. Já na introdução, Viola Enluarada diz a que vem. E vem se negar a transigências.
A mão que toca um violão
Se for preciso faz a guerra
Mata o mundo, fere a terra
É quase uma ameaça e sem dúvida é uma constatação. A arte (e o artista) podem resistir ou agredir. Harmonizar ou destruir. Abandonar ou construir. Enquanto se desenvolve, a música (de um campo harmônio criado originalmente no piano e que fica lindo em violões bem tocados) conta que “A voz que canta uma canção, se for preciso, canta um hino, louva à morte“. Uia, não? De novo, arte e o seus artistas. O espiritual e o corporal avisam que é possível, rapidamente, algo se transformar de leve para alguma coisa peso pesado. Que é preciso atenção diante de uma realidade dual, de torcidas que se apontam, se julgam e se atracam por um pedaço de nada. Canção enleva, hino convoca. Canção celebra a vida. Hino suporte mortes. Se você prestar atenção na letra, vai ver que o artista demonstra entender o valor de algo que se quer muito e que, exatamente por isso, precisa ser protegido. No caso, a liberdade que estava sendo violentamente retirada. Mas pode ser qualquer coisa, qualquer mesmo. Porque liberdade é um patrimônio tão coletivo quanto individual. Podemos resistir a uma ditadura, a um chefe canalha, a uma verdade mesquinha e inclusive sentimentos bons. Voltando à música, acho que “o mesmo pé que dança um samba, se preciso vai à luta, capoeira” é um aviso. Arte e artista podem ser divertimento ou combate. Afinal “quem tem de noite a companheira, sabe que a paz é passageira. Pra defendê-la se levanta e grita eu vou“. Inspira, mas não minimiza o desafio: se é paz que você quer, saiba que isso pode dar um certo trabalho. Tudo que possam te tomar, absolutamente tudo, vai exigir vigília. Entenda, a decisão é sua, só pode ser tomada pela pessoa e somente a ela interessa. Quem vai, seja onde for, é você. Talvez seja preciso gritar isso para si mesmo.
Porta bandeira, capoeira,
Desfilando vão cantando
Liberdade.
O final não poderia ser mais poético. Sugere que porta bandeira (a alegria carnavalesca) e a capoeira, símbolo de luta e arte, estarão juntas num desfile feito de resistência, essência e encontro. Um dia toco pra você. ***
O presente de hoje é Jair, Lula e um duo de violão que vou te contar. É de chorar num cantinho. Disse hoje sim. A canção é de Marcos Valle (música) e Paulo Sergio Valle (letra). Sim, são irmãos. O Marcos é pianista.